Cydney Seigerman, Donald Nelson, Evandro Neves e Pedro Paulo Soares (English version below)
As estruturas e as decisões envolvidas na gestão da água, e a pesquisa sobre elas, executam diferentes éticas, ou sistemas de valores, que muitas vezes são implícitas em decisões e ações. Frequentemente baseadas em considerações econômicas, éticas guiam decisões de maneira inculta com pouca consciência sobre subjacentes sistemas de valores. Embora, à medida que os sistemas de entrega de água continuam a sofrer tensão crescente, e escassez de água e desigualdades no acesso à água continuem a proliferar, explícitas considerações de ética é uma estratégia de abordar as deficiências atuais na gestão da água. Ao mesmo tempo, dado que os pesquisadores fazem parte dos sistemas que estudam, é importante avaliar reflexivamente como a pesquisadora contribui às dinâmicas de água. A ética como uma lente analítica cria espaço para avaliar as funções dos pesquisadores nos sistemas de água que estudamos, reavaliar as opções de gestão e promover práticas mais sustentáveis e equitativas.
Durante a última reunião da BNRGI de 2020, nós usamos a ética para abordar a água, a pesquisa sobre a água e as implicações de nossa presença como pesquisadores nas relações de água locais. Uma ética é uma sistema coerente de valores que indica como devemos nos comportar em circunstâncias particulares e nos ajudam a definir objetivos adequados e caminhos aceitáveis para atingir esses objetivos (Groenfeldt 2013). Os organizadores da reunião--Cydney Seigerman (UGA), Donald Nelson (UGA), Evando Neves (UFPA) e Pedro Paulo Soares (UFPA)--consideramos dimensões da ética em nossa pesquisa em Brasil sobre a gestão da água, conflitos sobre a água e a água como integral à memória socioecológica. A reunião destacou as formas como a ética e os valores desempenham papéis essenciais nas decisões e ações que envolvem a água. Neste post, nós discutimos as abordagens de ética hídrica faladas durante a reunião bem como questões reflexivas sobre ética como pesquisadores.
A ética tem que ver com decisões e comportamentos e tem implicações de longo alcance para definir e distribuir riscos, benefícios e responsabilidades associados às decisões de gestão da água. Como Nelson destacou durante a reunião, a ética hídrica pode ser categorizada como social, cultural, econômica ou ambiental (Groenfeldt 2013). Embora possa ser útil distinguir entre diferentes categorias de ética para entender os valores ou critérios que orientam a avaliação, julgamento e atitudes sobre a água, é importante lembrar que as dimensões dessas categorias podem se sobrepor. Os valores da água e a ética podem se enquadrar em uma ou mais dessas categorias e, como tal, juntas, as categorias podem ser pensadas como um diagrama de Venn de quatro vias (Figura 1).
A categorização da ética hídrica pode ajudar a elucidar os diferentes valores que sustentam as decisões e ações relacionadas à gestão da água. Além disso, as esferas éticas de ação são uma heurística útil para compreender a dinâmica da gestão da água em todos os níveis de análise (Cardoso de Oliveira e Cardoso de Oliveira 1996; Soares 2016). Durante o encontro, Soares explicou como os sujeitos (diferentes indivíduos ou grupos, incluindo residentes, técnicos e instituições internacionais), relações e valores podem variar nas esferas macro, meso e microética de ação (Figura 2).
Na cidade de Belém (PA), destacam-se diferentes facetas das relações cidade-água nessas esferas: enquanto a macroética é composta por determinantes globais, como as formas de financiamento internacional e os modelos escolhidos para projetos hídricos urbanos sob a orientação de instituições internacionais, a esfera mesoética envolve a realização de obras públicas e disciplinas incluindo gestores e técnicos de água. A esfera microética inclui as populações diretamente impactadas - e esperançosamente beneficiadas - pelas obras públicas urbanas, e as relações e valores que constituem a sua experiência vivida. Nós podemos entender cada uma das esferas de ação ética como abrangendo os tipos de ética explicada na categorização de Groenfeldt (Figura 3).
A dinâmica das relações hídricas nas esferas éticas de ação tem impacto e é afetada pela ética hídrica de grupos e indivíduos específicos. Em nosso encontro, Neves explicou como os conflitos entre pescadores artesanais e proprietários de terras resultaram de diferentes visões de propriedade e direitos a determinados recursos hídricos na Reserva Extrativista Marinha de Soure, localizada no arquipélago de Marajó, na Amazônia brasileira. Nessa região, fazendeiros que se consideram donos de nascentes dentro das unidades de conservação impedem os pescadores artesanais de pescar ali, embora os pescadores tenham garantido o direito a essas águas por meio do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU). A pesquisa de Seigerman no Ceará destaca ainda mais a dinâmica das relações hídricas e como os conflitos relacionados à água frequentemente envolvem disputas sobre disparidades no acesso à água e quem (por exemplo, agricultores rurais, irrigadores em grande escala ou populações urbanas) tem o direito a quais recursos hídricos. Os processos hídricos são sociais e ecológicos, pois reservatórios, políticas locais e estaduais e padrões de chuva interagem e fazem parte de como a água é entendida na região. A ética hídrica considera questões sobre a regulamentação da água como um recurso e também expande as conversas para examinar os valores e significados locais da água.
Visto que consideramos a ética hídrica uma abordagem para estudar a dinâmica da gestão da água, é igualmente importante, como pesquisadores, avaliar nossos próprios papéis nas regiões em que trabalhamos. Seigerman explicou a ética de cuidado, colaboração e reciprocidade que ele traz para sua pesquisa, incluindo seu trabalho contínuo com grupos de teatro, bailarines, instituições e comunidades locais no Ceará.
Os papéis que assumimos em nosso trabalho - como cientistas ou artistas, ativistas políticos ou membros da comunidade - e as abordagens que desenvolvemos afetam as relações complexas que constituem nossas áreas de estudo. Embora possamos ou não buscar ativamente mudar essas dinâmicas, nossos enquadramentos impactam como essas relações são representadas e compreendidas. Nos comentários pós-reunião, Gregory Thaler (UGA) levantou questões sobre se é possível desenvolver abordagens que não “violem” a multidimensionalidade das realidades socioecológicas que estudamos. A maneira em que alguém responder a essa pergunta dependerá de suas visões de mundo e sua compreensão do que constitui a realidade. Perspectivas diferentes levarão a respostas diferentes. Mas refletir sobre como nossas abordagens teóricas podem impactar as perguntas e as observações que fazemos pode servir como um lembrete de como nossos conjuntos de valores, ou éticas, são fundamentais para nossas práticas de pesquisa.
Bibliografia selecionada
Biesel, S. and D.R. Nelson. 2019. A Importância da ética para a gestão da água. In Adapta: gestão adaptativa do risco climático de seca, pp. 407 - 418. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.
Cardoso de Oliveira, R. and L. R. Cardoso de Oliveira. 1996. Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
Conquergood, D. 2002. Performance Studies: Interventions and Radical Research. TDR (1988-), 46(2), 145-156.
Groenfeldt, D. 2013. Water ethics: a values approach to solving the water crisis. Routledge.
Soares, P. P. d. M. A. 2016. Memória ambiental na bacia do UNA : estudo antropológico sobre transformações urbanas e políticas públicas de saneamento em Belém (PA). (PhD). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Oliver, K. 2015. Witnessing, Recognition, and Response Ethics. Philosophy & Rhetoric, 48(4), 473-493.